CRÔNICA PARA A PROFESSORA ANA LÚCIA
Luiza Helena Oliveira da Silva
Ana Lúcia é uma amiga de longa data, professora de Língua Portuguesa numa Instituição de Ensino Superior do Estado do Rio. Nos diálogos que mantemos por e-mail, atenuando a longa distância geográfica que entre nós se interpõe, dividimos os sucessos e angústias diante da prática docente. Ana lamenta que, ao ensinar as técnicas de redação comercial, seja necessário partir de elementos óbvios como a necessidade do uso do vocativo ou a presença da data. Imaginemos, então, os desafios até conseguir que o aluno domine a escrita de gêneros textuais distintos (memorandos, ofícios, atas etc.), que exigem, sobretudo, clareza, emprego da norma culta, objetividade, precisão...
Quando trabalhamos textos dessa natureza, geralmente partimos da concepção de linguagem formalizada por Roman Jakobson, da Teoria da Comunicação. De um lado está o emissor, que precisa dominar o código lingüístico, elaborar com competência a mensagem a partir da definição de objetivos e intenções comunicativas, escolher o suporte adequado (canal), considerar o repertório do interlocutor e, finalmente, enviar a mensagem. Do outro lado, está o receptor, destinatário a quem cabe decodificar o que foi declarado. Fim. Parece que tudo se resolve no âmbito dos conhecimentos lingüísticos e pragmáticos desses sujeitos postos em diferentes lugares. Emissor e receptor se comunicam e seguem felizes seu destino humano de sujeitos falantes.
O problema, contudo, é que a linguagem não funciona bem assim. Nos cursos que exigem da língua portuguesa uma abordagem mais técnica, geralmente as discussões param por aí e agradecemos aos céus quando temos diante de nossos olhos textos claros, com a linguagem adequada, que, enfim, comunicam seus propósitos. Mas há mais do que isso.
Imagino, caro leitor, que muitas vezes tenha se deparado com situações nas quais lhe faltaram palavras. Ou essas sobraram, dizendo mais do que deviam, escapando ao seu controle e comedimento racional. Lembremos a esse respeito alguns casos envolvendo grandes oradores, argutos na retórica, arte do convencimento, como nossos políticos. Entre as pérolas de Maluf, encontra-se a sua frase infeliz, dita de modo imprudente ao pronunciar-se sobre estupros seguidos de morte, em São Paulo, em 1989: “Estupra, mas não mata”. Quem em sã consciência diria uma barbaridade dessas? Ou lembremos o exemplo recente da ministra Marta Suplicy, aconselhando passageiros diante do caos aéreo que há meses ocupa as manchetes dos jornais: “Relaxa e goza”.
Desastres aéreos, desastres verbais: o que aprendemos ao longo da vida é que a linguagem é dada a entraves. Não dizemos tudo que queremos. Há uma distância considerável entre o que pensamos dizer e o que o outro interpreta, lacuna intransponível entre o que pensamos e o que traduzimos na precariedade da nossa prosa ou nosso verso.
Conforme Eni Orlandi, no livro As forma do silêncio no movimento dos sentidos, há silêncio entre as palavras e até mesmo o silêncio produz sentidos. É isso que faz com que, pelo que a TV Globo não diz num telejornal, por aquilo que exclui e apaga dos noticiários, possamos intuir sobre seus comprometimentos ideológicos. Era isso que denunciava Leonel Brizola, justificando suas restrições a essa emissora. Assim, silenciar é ainda dizer, de outro modo. Lembremos a esse respeito da censura no período ditatorial.
Fosse a linguagem limitada ao que dizem os manuais de redação e os cursos de Letras não teriam a menor graça. Ana e eu estaríamos estudando outras coisas, movidas por outras paixões. E é por refletir sobre os sabores e dissabores da linguagem humana que me ponho a pensar nesse momento: por que é mesmo que meu amado não responde aos meus e-mails?
Texto publicado no jornal O Norte, de Araguaína, em 2007 (coluna Luiza Brisa)
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